O ETERNAUTA 1969
TAL COMO MAUS (SPIEGELMAN), QUE EXPÕE OS HORRORES DO HOLOCAUSTO, E GEN PÉS DESCALÇOS (NAKAZAWA), QUE RELATA DETALHES DE UMA HIROSHIMA DEVASTADA PELA BOMBA ATÔMICA, O ETERNAUTA 1969 TE FAZ REFLETIR SOBRE O SIGNIFICADO DA PALAVRA “DITADURA”…
Neto • Sexta, 12 de fevereiro de 2021 • 21h00min.
Para se ter uma ideia da importância de O Eternauta na Argentina, veja que a data que se comemora hoje o dia das historietas (HQs argentinas) é em 4 de setembro, escolhida por ser o mesmo dia em que os irmãos Héctor e Jorge Oesterheld publicaram, em 1957, o primeiro número da sua periódica de antologias Hora Cero Semanal, de sua também recém-fundada editora Editorial Frontera; e essa mesma edição da Hora Cero trazia o início da série semanal escrita pelo próprio Héctor e desenhada por Francisco Solano López, e se estendeu até 1959.
Claro que esse dia comemorativo não é a importância em si, e sim reflexo dela. O real peso está no caráter político que veio sendo percebido na obra ao longo dos anos, por todas as alegorias sociopolíticas que ela retratou sobre os regimes ditatoriais, não só de seu país como também de toda a América Latina.
E nessa edição da Comix Zone de O Eternauta 1969 tais metáforas são mais escrachadas ainda. Aqui temos o remake do clássico dos anos 50, agora desenhado por Alberto Breccia, publicado a partir de 29 de maio de 1969 dentro da revista Gente nº 201, que como muitos relatam, era uma espécie de Caras aqui no Brasil. Ou seja, sua linha editorial era um “nada a ver” com os ideais de Héctor Germán Oesterheld. Imagine uma Argentina que vinha sofrendo atrocidades com a Ditadura desde o golpe militar de 1966, e uns três anos depois surge uma HQ que confronta todo um sistema de domínio e começa a ser publicada em uma revista de fofocas e celebridades! Sacou?!
Tanto é que com o tempo isso passou a incomodar sim e já na n° 209 da Gente críticas começaram a surgir, mas sem muito embasamento, pegando no pé do traço do desenhista. Ironicamente (mas não por acaso) essa versão mais politizada de O Eternauta, que denunciava não só as ditaduras latinas, como também o descaso e o domínio das grandes potências mundiais sobre os países sul-americanos, foi vítima de uma Ditadura Editorial e começou a sofrer ataques.
Segundo o próprio Breccia, o telefonaram pedindo que ele deixasse os desenhos mais claros e comerciais. Ele se negou. Héctor Oesterheld também foi abordado e, como este não queria deixar a obra inacabada, ambos tiveram que espremer mais da metade da história em apenas dois ou três capítulos. Eu mesmo senti essa aceleração na narrativa a partir do capítulo de 4 de setembro. Tanto que todos os capítulos eram formados por três pranchas por semana, e somente o último, o capítulo 17, teve duas páginas. É por isso que algumas pessoas se confundem e dizem que O Eternauta 1969 está incompleto. Mesmo assim Oesterheld foi competente o suficiente para manter a qualidade de sua obra até o fim.
E enquanto se arrastava até a Gente nº 217, onde foi concluída em 18 de setembro, o editorial continuava trazendo cartas de leitores com repúdio aos desenhos de Breccia. E a paulada na nuca veio do editor Carlos Fontanarrosa denegrindo ainda mais os autores em uma carta de desculpas aos leitores nesse mesmo número.
Isso são bastidores. Quanto a falar da história e citar as alegorias que ela imprime pode estragar sua experiencia de leitura. Mas quando for ler, atente para as entrelinhas. Quase nada ali é por acaso. É uma alegoria sobre o medo que prende, que impede a rebelião e que mata. Também chama a atenção para a nossa regressão à pré-história com a sobrevivência do mais forte em situações limites. A cada leitura que se faz se percebe uma nova metáfora embutida lá por Oesterheld. Alegorias essas tão entranhadas na trama que seria até spoiler eu escrever sobre elas. E ainda hoje as críticas são tão atuais quanto as músicas de Legião Urbana. Pense numa historieta atemporal!
Fico imaginando se o roteiro não tivesse sido comprimido, se tudo tivesse ocorrido bem, quanta coisa a mais teria sido explorada nele (roteiro) e no traço de Breccia… E com isso o quanto nós, a América Latina, o mundo, perdemos por causa dessa repressão…? Entre 1976 e 1978 a revista Skorpio publicou O Eternauta II com o retorno da parceria com Solano López. Entretanto, Oesterheld é levado pela Ditadura em 1977 e desaparece para sempre, o que sugere que Solano López tocou a obra até o ano seguinte.
Segundo o artigo O papel do poder político na obra O Eternauta, de Oesterheld e Solano López, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em 2015, seu desaparecimento foi em 27 de abril de 1977, tendo sido morto no ano seguinte e o corpo nunca encontrado. Suas filhas também foram levadas e mortas. Beatriz Marta (19), Diana Irene Oesterheld Araldi (23), Estela Inés (24) e Marina (18). Irene e Marina inclusive estavam grávidas e seus maridos Raul Carlos Araldi e Oscar Alberto Seindlis, respectivamente, tal como o marido de Estela, Raúl Oscar Mortola, também desapareceram. Ainda segundo o artigo, citando Rogério de Campos, “Solano López também teve dificuldades com a ditadura militar argentina, pois seu filho Gabriel Solano López também foi detido na ditadura militar argentina, em função de suas ligações com o grupo Montoneros. Ambos, posteriormente, exilaram-se na Espanha. Tal fato fez com que a obra O Eternauta II tivesse a sua conclusão em território espanhol.”
Essa edição lançada em outubro de 2019 pela Comix Zone, além de todos os 17 capítulos históricos de 1969, traz um belo prefácio de André Pereira de Carvalho, Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que traça um paralelo assombroso entre a Argentina ditadora de 1969 e o Brasil de 2019, e um posfácio documental de Guillermo Saccomanno e Carlos Trillo.
Vídeo de lançamento com o editor Thiago Ferreira / Comix Zone.